Apolíneo e dionisíaco
- Nietzsche critica a tradição da filosofia
ocidental a partir de Sócrates, a quem acusa de ter negado a intuição criadora
da filosofia anterior, pré-socrática.
- O filósofo alemão, estabelece a distinção entre
dois princípios: o apolíneo e o dionisíaco, a partir,
respectivamente, dos deuses gregos Apolo (deus da razão, da clareza, da
ordem) e Dioniso (deus da aventura, da música, da fantasia, da
desordem).
- Esses dois princípios ou dimensões complementares
da realidade – o apolíneo e o dionisíaco – foram separados na Grécia socrática,
que, optando pelo culto à razão, secou a seiva criadora da filosofia, contida
na dimensão dionisíaca.
A transvaloração dos valores
- Nietzsche orienta-se no sentido de recuperar as
forças vitais, instintivas, subjugadas pela razão durante séculos.
- Para tanto, critica Sócrates por ter sido o
primeiro a encaminhar a reflexão moral em direção ao controle racional das
paixões.
- Segundo ele, a tendência de desconfiança nos
instintos culmina com o cristianismo, que acelera a
domesticação do ser humano.
- Em diversas obras, como Sobre a genealogia da moral, Para além do bem e do mal e Crepúsculo dos ídolos, em estilo apaixonado e mordaz, Nietzsche
faz a análise histórica da moral e denuncia a incompatibilidade entre esta e a
vida.
- Sob o domínio da moral, o ser humano se
enfraquece, tornando-se doentio e culpado.
- Nietzsche relembra a Grécia homérica, do tempo das epopeias
e das tragédias, momento em que predominavam o que para ele eram os verdadeiros
valores aristocráticos, quando a virtude reside na força e na potência, como
atributo do guerreiro belo e bom, amado dos deuses.
- Segundo Homero, entre inimigos não há bom ou mau,
porque ambos são valorosos.
- Ao fazer a crítica da moral tradicional,
Nietzsche preconiza a “transvaloração de todos os valores”. Diz Scarlett
Marton:
A noção nietzschiana de valor opera uma subversão
crítica: ela põe de imediato a questão do valor dos valores e esta, ao ser
coloca, levanta a pergunta pela criação dos valores. Se até agora não se pôs em
causa o valor dos valores “bem” e “mal”, é porque se supôs que existiram desde
sempre; instituídos num além, encontravam legitimidade num mundo
suprassensível. No entanto, uma vez questionados, revelam-se apenas “humanos,
demasiado humanos”; em algum momento e em algum lugar, simplesmente foram
criados”.
A genealogia da moral
- Se os valores não existiram desde sempre, mas
foram criados, Nietzsche propõe a genealogia como método de investigação
sobre a origem deles.
- Mostra assim as lacunas, o que não foi
dito ou foi recalcado, permitindo que alguns valores predominassem sobre
outros, tornando-se conceitos abstratos e inquestionáveis.
- Pela genealogia Nietzsche descobre que os
instintos vitais foram submetidos e degeneraram.
- Procura então ressaltar aqueles valores
comprometidos com o “querer-viver”.
- Denuncia a falsa moral, “decadente”, “de
rebanho”, “de escravos”, cujos valores seriam a bondade, a humildade, a
piedade e o amor ao próximo.
- Distingue então a moral de escravos e a moral
de senhores:
a) A moral de escravos.
- A moral de escravos é herdeira do pensamento:
·
socrático-platônico – que provoca a ruptura entre o
trágico e o racional.
·
tradição judaico-cristã, da qual deriva a moral
decadente, porque baseada na tentativa de subjugação dos instintos pela razão.
- O homem-fera, animal de rapina, é transformado em
animal doméstico ou cordeiro.
- A moral plebéia estabelece um sistema de juízos
que considera o bem e o mal valores metafísicos transcendentes, isto é,
independentes da situação concreta (histórica) vivida.
- A moral de escravos nega os valores vitais e
resulta na passividade, na procura da paz e do repouso.
- O indivíduo se enfraquece e tem diminuída sua
potência.
- A alegria é transformada em ódio à vida, o ódio
dos impotentes.
- A conduta humana, orientada pelo ideal ascético,
torna-se vítima do ressentimento e da má consciência – o sentimento de culpa.
- O ressentimento nasce da fraqueza e é nocivo ao
fraco.
- O indivíduo ressentido, incapaz de esquecer, é
como o dispéptico (que digere mal os alimentos – no texto significa o
ressentido “remói” o seu fracasso): fica “envenenado” pela sua inveja e impotência
de vingança.
- Ao contrário, o indivíduo nobre sabe “digerir”
suas experiências, e esquecer é uma das condições de manter-se saudável.
- O sentimento de culpa é o ressentimento voltado
contra si mesmo, daí fazendo nascer a noção de pecado, que inibe a ação.
- O ideal ascético nega a alegria da vida e coloca
a mortificação como meio para alcançar a outra vida num mundo superior, do
além.
- As práticas de altruísmo destroem o amor de si,
domesticando os instintos e produzindo gerações de fracos.
b) A moral de senhores.
- A moral “de senhores” é a moral positiva que visa
à conservação da vida e dos seus instintos fundamentais.
- É positiva porque baseada no sim à vida, e
configura-se sob o signo da plenitude, do acréscimo.
- Funda-se na capacidade de criação, de invenção,
cujo resultado é a alegria, consequência da afirmação da potência.
- O indivíduo que consegue se superar é o que
atingiu o além-do-homem.
- O sujeito além-do-homem é aquele que consegue
reavaliar os valores, desprezar os que o diminuem e criar outros que estejam
comprometidos com a vida.
- Assim diz Roberto Machado:
É por isso que contra o enfraquecimento do homem,
contra a transformação de fortes em fracos – tema constante da reflexão
nietzschiana – é necessário assumir uma perspectiva além de bem e mal, isto é,
“além da moral”. Mas, por outro lado, para além de bem e mal não significa para
além de bom e mau. A dimensão das forças, dos instintos, da vontade de potência
permanece fundamental. “O que é bom? Tudo que intensifica no homem o sentimento
de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo que
provém da fraqueza”.
A vontade de potência.
Com o que foi exposto, talvez se pense que Nietzsche chega ao extremo
individualismo e amoralismo. Muitos inclusive o chamaram de niilista, para
acusá-lo de não acreditar em nada e negar os valores, o que não faz jus ao seu
pensamento. Ao contrário, o filósofo atribuía o niilismo (significa nada) à
moral decadente dos valores tradicionais, que acomodaram o ser humano na
mediocridade que tudo uniformiza.
- Destruir esses valores é a condição para que
possam nascer os valores novos do além–do-homem, o que só pode ser alcançado
pela “vontade de poder”.
- Também essa expressão leva a confusões: não se
trata de poder que domina os outros, mas das forças vitais recuperadas pelo
indivíduo dentro de si “num dionisíaco dizer-sim ao mundo” e que se encontravam
entorpecidas.
- Nesse sentido, o poder é virtude no sentido de
força, vigor, capacidade. Portanto, virtude é autorrealização.
- Se essa moral valoriza a individualidade, o faz
tanto para si como para os outros, pois cada um pode ser ele mesmo.
Niilismo.
Segundo a análise de Nietzsche, no momento em que o cristianismo deixou
de ser a “única verdade” para se tornar uma das interpretações possíveis do
mundo, toda a civilização ocidental e seus valores absolutos também foram
postos em xeque.
- Nesse contexto, ocorre uma escalada do niilismo,
que “deve ser entendido como um sentimento opressivo e difuso, próprio às fases
agudas de ocaso de uma cultura.
- O niilismo seria a expressão afetiva e
intelectual da decadência.
- O niilismo moderno apontado por Nietzsche
assenta-se, em grande parte, na ideia da “morte de Deus”.
- Em sua obra Gaia ciência, o filósofo
decreta que “Deus está morto”, mas esclarece que quem o matou fomos nós
mesmos, ou seja, trata-se de um acontecimento cultural.
- Desse modo, teríamos destruído os fundamentos
transcendentais (assentados em Deus) dos valores mais caros de nossas vidas.
- Assim, por meio do niilismo:
[...] o homem moderno vivencia a perda de sentido
dos valores superiores de nossa cultura.
- Por essa ótica, niilismo seria o sentimento
coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valoração, tanto no plano do
conhecimento quanto no ético-religioso, ou sociopolítico, ficaram sem
consistência e já não podem mais atuar como instâncias doadores de sentido e
fundamento para o conhecimento e a ação.
- Apesar desse niilismo em relação aos valores
consagrados da civilização, Nietzsche defendeu também valores afirmativos da
vida, capazes de expandir as energias latentes em nós.
- “Ouse conquistar a si mesmo” talvez seja a grande
indicação nietzschiana àqueles que buscam viver a “liberdade da razão”, sem
conformismo, resignação ou submissão.
Fonte: Filosofando: introdução à Filosofia e Fundamentos de Filosofia.