Michel Foucault ao lado do também filósofo francês Jean-Paul Sartre. |
Foucault participou
teórica e praticamente dos movimento sociais que poderíamos chamar de vanguarda
de seu tempo, sobretudo durante as décadas de sessenta e setenta: a luta
antimanicomial (sua experiência num hospital psiquiátrico foi uma das
motivações que o levou a escrever História
da Loucura); as revoltas nos presídios franceses (junto com Gilles
Deleuze criou o GIP – Grupo de Informação sobre as Prisões, que buscava dar voz
aos presos e às outras pessoas diretamente envolvidas no sistema prisional; com
base nessa experiência escreveu Vigiar
e Punir); o movimento gay (uma das motivações para sua História da Sexualidade).
O pensador francês
também escreveu artigos para jornais e revistas no calor da hora sobre
acontecimentos importantes, deu conferências e entrevistas em diversos países,
inclusive no Brasil. Contrapunha seu papel de intelectual ao “intelectual
universal”, isto é, uma espécie de líder que pensa pelas massas e as dirige
para a “verdadeira” luta. O filósofo via a si mesmo como um “intelectual
específico”, aquele que em domínios precisos contribui para determinadas lutas
em curso no presente. Parafraseando Deleuze, Foucault foi o primeiro a ensinar
a indignidade de falar pelos outros.
Ele dizia que suas
pesquisas nasciam de problemas que o inquietavam na atualidade: evidências que
poderiam ser destruídas se soubéssemos como foram produzidas historicamente;
por isso fez da ontologia (o estudo do ser, um modo de reflexão geralmente
desligado da realidade histórica, uma vez que busca princípios – as ideias,
para Platão; o cogito, para Descartes; o sujeito transcendental, para Kant –
que antecedem e, por assim dizer, fundam a história) uma reflexão em cujo cerne
está o presente e, portanto, a investigação histórica.
Através de estudos
transdisciplinares (e não entre disciplinas, pois trata-se de colocar em
questão os limites entre elas), Foucault deu forma a uma crítica filosófica que
recorre sobretudo à pesquisa histórica, para questionar as maneiras pelas quais
certas verdades e seus efeitos práticos vieram a se formar e se estabelecer no
presente.
Questionava assim
os sistemas de exclusão criados pelo Ocidende quando do início da época moderna
(na cronologia de Foucault, desde fins do século XVIII):
Ø o saber médico e psiquiátrico – a patologização e a
medicalização como formas modernas de dominação sobre seres economica e
socialmente inconvenientes, os loucos;
Ø o nascimento das ciências humanas e da filosofia
moderna como saberes que atestam a invenção do conceito de homem, transformando
o ser humano, ao mesmo tempo, em sujeito do conhecimento e objeto de saber: o
grande dogma da modernidade filosófica;
Ø a prisão e outras instituições de confinamento (tais
como a escola, a fábrica, o quartel) não como um avanço nos sentimentos morais
e humanitários, mas como mudança de estratégia do poder, que visa o disciplinamento
e a docilização dos corpos;
Ø a sexualidade como dispositivo histórico de objetivação
(o indivíduo como objeto de saber e ponto de aplicação de disciplinas) e
subjetivação (o modo segundo o qual o sujeito se reconhece enquanto tal) do
corpo, através dos quais se implica uma verdade essencial do homem. Não deixa
de ser notável o fato de o Ocidente ter inventado um ritual singular segundo o
qual algumas pessoas alugam os ouvidos de outras (os psicanalistas) para
falarem de seu sexo.
Às suas pesquisas,
ele chamou ontologias do presente: um modo de reflexão, segundo Foucault
iniciado por Kant, em que está em jogo o vínculo entre filosofia, história e
atualidade. A tarefa de pensar o hoje como diferença na história. Mas se a
questão para Kant era a de saber quais limites o conhecimento deve respeitar
(os limites da razão), em Foucault a questão se converte no problema de saber
quais limites podemos questionar e transgredir na atualidade, isto é, “dizer o
que existe, fazendo-o aparecer como podendo não ser como ele é” (2008, p. 325).
Nesse sentido, o
filósofo procurava dar visibilidade às partes ocultas que formam o presente e
os fragmentos de narrativas que nos constituem lá mesmo onde não há mais
identidade, onde o “eu” se encontra fracionado pela história plural que o
engendrou. De modo que esse questionamento histórico-filosófico não nos conduz
à reafirmação de nossas certezas, de nossas instituições e sistemas, mas ao
afastamento crítico dessas instâncias e de si próprio como exercício ético e político.
Como indica Deleuze (1992, p. 119): “a história, segundo Foucault, nos cerca e
nos delimita; não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de
diferir; não estabelece nossa identidade, mas a dissipa em proveito do outro
que somos”.
A história (não a
narrativa histórica ou a escrita da história, mas as condições de existência
dos homens no decorrer do tempo, que lhes escapa à consciência), não é da ordem
da necessidade; ela diz respeito à liberdade, à invenção; pertence à ordem mais
da casualidade do que da causalidade; é feita mais de rupturas e violência do
que de continuidades conciliadoras. Esse modo de conceber a história se opõe à
imagem tranquila que a narrativa histórica tradicional criou: a história do
homem como a manifestação de um progresso inevitável – o lento processo de
realização de uma utopia –, que seria alcançado após o iluminismo pela
aplicação dos métodos racionais. Como se a ciência, o pensamento e a vida
estivessem continuamente mais próximos de verdades que aos poucos são reveladas
como o destino final do homem.
Se os estudos de
Foucault mostram que os seres humanos não dominam os acontecimentos que
constituem o solo de suas experiências, eles atestam ao mesmo tempo que, no
espaço limitado do presente, as pessoas dispõem da possibilidade de questionar
o que muitas narrativas apresentam como necessário, assim como as formas de
poder e dominação que se pretendem absolutas.
Os procedimentos de
Foucault postulam, tal como Nietzsche descobrira no final do século XIX, que é
possível fazer uma história de tudo aquilo que nos cerca e nos parece essencial
e sem história – os sentimentos, a moral, a verdade etc. Essa
descoberta indica que, mesmo esses elementos aparentemente universais ou imunes
à passagem do tempo, se dão como contingências históricas, como coisas que
foram criadas em um dado momento, em circunstâncias precisas.
Trata-se, assim,
para Foucault, de pensar a história de determinadas problematizações: a
história de como certas coisas se tornam problemas para o pensamento, dignas de
serem pensadas por um ou outro domínio do saber e, através de formas de
racionalização específicas, verdades são fabricadas. De maneira que suas
pesquisas mostram que nossas evidências são frágeis e nossas verdades, recentes
e provisórias.
http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/para-compreender-michael-foucault-9711.html