terça-feira, 3 de maio de 2011

O que é Filosofia para Crianças?

Paulo Ghiraldelli Jr
Universidade Estadual Paulista, Unesp, câmpus de Marília
O que é Filosofia para Crianças? Trata-se de ensinar a filosofia ou as filosofias para as crianças? Não creio que isso tenha sentido. Filosofia, séria, é um saber que envolve o domínio de técnicas que dependem de uma formação árdua, que não é possível de ser iniciada verdadeiramente na infância. Talvez somente no ensino médio, e ainda assim com muita dificuldade. Filosofia para crianças é, então, contar a história da filosofia, de um modo simplificado, para as crianças? Ora, para que? Para torná-las falsas eruditas? Não, isso me parece ridículo. Seria, então, o trabalho de se utilizar da filosofia para fazer as crianças pensarem? Isso é vazio: criança pode pensar, pensar bem, melhorar sua capacidade intelectual se puder aumentar seu universo vocabular e se tiver convivência com gente inteligente. A filosofia não garante isso. Não foi feita para tal. Bem, então, por fim, filosofia para crianças é o trabalho de instigar o nascimento do "pensamento filosófico" nas crianças através de contos preparados especialmente para tal? Muita gente crê nisso, mas eu duvido que isso não possa ser feito por qualquer outra disciplina, qualquer outra atividade nas mãos de qualquer outra pessoa, basta que tal pessoa seja um adulto inteligente, razoavelmente culto e que goste de crianças, dando-lhes boas coisas para ler.
Por todas essas razões, as várias faces da "filosofia para crianças", que em geral são apresentadas a mim, com raras exceções (Stella Accorinti é uma delas), me fizeram escrever em outro texto que filosofia não é coisa de criança. Nem a filosofia "hard", nem essas metamorfoses que querem se passar por "métodos de filosofia para criança".
Penso que se alguém quiser fazer algo que ele queira chamar de "filosofia para crianças", o melhor que pode fazer é ser ele próprio um bom professor de filosofia que saiba como o espírito da filosofia mudou. Se ele puder despertar na criança esses vários espíritos da filosofia, então, se quiser, pode até batizar isso de filosofia para crianças, embora pudesse também apenas dizer que se trata de uma educação com perspectivas amplas, para toda e qualquer criança que queremos ver como um adulto sadio intelectualmente e como uma pessoal moralmente correta.
E o que são esses diversos "espíritos da filosofia"? Ora, eu falei deles quando escrevi "O que é definir a filosofia" e "O que é a filosofia?"
O que a filosofia fazia, segundo Platão e Aristóteles? Ora, para eles, a filosofia aparece quando ela inaugura perguntas sobre o banal, causando então o estranhamento e a admiração daquilo que até então não parecia merecer nenhum questionamento. O fim do banal! ¾ se alguém quiser levar as crianças a abandonar a atitude que tudo banaliza, então, até podemos dizer, creio eu, que estamos levando para as crianças algum espírito da filosofia. As estrelas estão sempre lá. Nós não nos preocupamos com elas. São uma banalidade. Mas as crianças, muitas delas, se encantam com o céu na sua banalidade. Então, levar as crianças a explorar essa vontade de perguntar sobre o banal fazendo do banal não mais um elemento da banalidade pode ser, talvez, filosofia para crianças. Outras banalidades podem deixar de serem banais: quando eu era criança, era banal matar passarinho. Todavia, não para mim. Nunca atirei uma pedra em um passarinho. Eu tinha estilingue, é claro. Brinquei de "guerra de mamonas" na minha rua. Mas só usei o estilingue para atirar em latas e, depois, para acertar a bunda de algum adversário na "guerra de mamonas". Meu pai havia sido, na juventude, pescador e caçador. Sem ouvir qualquer discurso ecológico, uma vez mais velho, ele me ensinou que a morte de um animal não podia ser vista como algo banal. Talvez, quem sabe, ele tenha feito filosofia para crianças, no espírito da retirada da banalidade, como pensaram Aristóteles e Platão na idéia de que filosofia tem a ver com o estranhamento com o que até então era o comum.
Para os filósofos modernos, filosofia não tem tanto a ver com o estranhamento para com o mundo e para com nós mesmos. Os modernos acham, sim, que um problema filosófico importante é o surgimento, funcionamento e produção da verdade enquanto conhecimento verdadeiro. O espírito da filosofia moderna, com Descartes à frente, e Kant com a bandeira maior, revela-se na busca de uma explicação para o conhecimento e, então, para a instância na qual ele ocorre: o sujeito. Que sujeito? O indivíduo? Não ¾ é tolo quem confunde indivíduo com sujeito. O sujeito para a filosofia tem a ver com uma instância que forma a subjetividade, que é uma instância metafísica, mas que ao mesmo tempo deve ter uma ligação com o sensível. A filosofia moderna está preocupada com teoria do conhecimento, com epistemologia e, depois, com a própria montagem dessa instância chamada subjetividade.
Kant disse que antes de fazermos qualquer afirmação racional metafísica, deveríamos questionar a razão; fazer, portanto, a crítica. Ora, a crítica não é propriamente um conhecimento; ela é uma propedêutica ao conhecimento na medida em que ela é negativa; ela questiona, pela razão, o quanto a razão possui de legitimidade para dizer que pode produzir e/ou encontrar o conhecimento. Marx também usou a palavra crítica nesse sentido - quais as condições mais amplas, inclusive sociais, para se saber, pela razão, X ou Y.
Então, levar as crianças a perguntar pela legitimidade de qualquer atitude dita racional é aproveitar do espírito da filosofia para as crianças. Não é torná-las críticas, mas é fazê-las perseguidoras de justificativas, que se dizem racionais, que lhes são impostas. Se assim faz um professor de filosofia, ele talvez esteja fazendo um pouco de filosofia para crianças. Meu avô, por exemplo, que era um bom advogado, me ensinou a sempre ouvir e, depois, querer saber das razões, querer ver qual lado tem as melhores justificativas. E eu cresci assim, meio que não admitindo não colocar no tribunal da razão as frases ditas racionais que presidentes, chefes quaisquer, coordenadores, governadores e simples diretores de algumas entidades a que pertencemos dizem que são legítimas. Talvez meu avô tenha feito filosofia para crianças.
Os contemporâneos, Nietzsche, Dewey, James, e os vivos, Davidson, Rorty, Derrida, viram na filosofia não um trabalho crítico, mas um trabalho de redescrição e, para tal, cobraram da filosofia que ela ficasse atenta às novas metáforas pois, apesar delas não poderem ser entendidas no sentido de serem parafraseadas, elas são motivadoras de novos comportamentos, e, quem sabe, com sorte, comportamentos melhores.
O espírito da filosofia contemporânea e atual, então, se deslocou para a atenção à idéia de provocar os órgãos do bípedes sem penas que se ligam à esperança, deixando em segundo plano os órgãos dos bípedes sem penas mais voltados para o conhecimento. Nesse caso, fomento em meus filhos a esperança, quero que eles acreditem que podemos criar situações melhores a partir dos novos vocabulários que noto surgir. Quantas e quantas expressões que os jovens falam que não entendemos, mas que fazem os conservadores tremerem, não é verdade? Essas expressões, uma vez repetidas, talvez sejam a chave para criarmos comportamentos menos discriminatórios e, assim, colaborarmos com a idéia de que democracia não é o cumprimento da decisão da maioria, mas sim o cumprimento da decisão da maioria em favor de uma maior integração e respeito para com as minorias. Como meu pai e meu avô, talvez fazendo isso com meu filhos eu esteja fazendo filosofia para crianças.
Como vocês podem ver, tudo o que faço nada mais é que, sabendo um pouco de filosofia, por conta de ser professor de filosofia, construir algumas estratégias de vida ou algumas estratégias pedagógicas que meu pai e meu avô usaram e eu, em outro espírito, por conta de outra noção de filosofia, venho usando. Se quiserem chamar a isto de filosofia para crianças, não ficarei magoado, mas se chamarem a isto de uma relação educacional de um professor de filosofia com crianças, creio que ficaria mais contente. E isso é filosofia para crianças.
Paulo Ghiraldelli Jr – um dia após me tornar professor titular em filosofia da educação pela Universidade Estadual Paulista, julgado pela banca: Dermeval Saviani, Carlos Jamil Cury, Nadja Hermann, Nilo Odália e Tarso Mazzotti.
Jardim Acapulco, Marília
26 de abril de 2001

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